Muitas vezes apelidados de matreiros ou interesseiros, os gatos são, na verdade, seres muito habilidosos. Sendo animais super curiosos, muitas vezes esquecemo-nos que esta é uma característica intrinsecamente ligada à inteligência. Ora, seres inteligentes tendem a prosperar melhor.
As suas origens instintivamente felinas aliadas a séculos de convivência mútua com humanos, faz dos gatos animais altamente habilitados a uma sobrevivência eficaz e meticulosamente adaptada a uma vida doméstica. Fazendo de tudo para que, no mínimo, estejam sempre confortáveis, tiram partido do ambiente que os rodeia para satisfazerem as suas necessidades mais básicas: nunca estar abaixo de um nível “bom” de conforto.
Tendo tido gatos a vida toda, o primeiro gato inteiramente à minha responsabilidade veio para minha casa há 9 anos: Elias, o primogénito. Passados 3 anos juntou-se à família um segundo membro: Laura Palmer, a princesa.
A convivência diária com os gatos é desafiadora e, por isso mesmo, uma experiência que adoro. A partilha é diária e mútua e são animais muito fáceis de lidar se os soubermos interpretar e dar a devida atenção.
Ao longo do tempo fui observando que muitas vezes o seu comportamento e forma de estar dão-nos não só pistas sobre eles, como também do ambiente que os rodeia, isto é, o meu ambiente doméstico: a minha casa.
São capazes de interpretar muito bem o espaço e são hábeis a movimentar-se nele, sendo possível traçar paralelismos entre as qualidades espaciais da arquitectura e a forma como estes espaços, dotados de qualidade, contribuem para o aumento da felicidade felina. Continuando o paralelismo, penso que muitas destas características podem ser associadas a questões básicas da arquitectura, o que faz dos meus gatos excelentes colegas de profissão (excepto quando estão a dormir enquanto trabalho, como é o caso da redação deste texto…).
(…) as casas do Siza parecem gatos a dormir ao sol: estão bem com eles próprios, estão bem no sítio, têm uma postura entre o apoio e a forma que é justaposta; ficam duas coisas naturais.” [1]
O primordial desafio do arquiteto: como implantar o edifício de forma a que a exposição solar seja adequada à vivência doméstica, é um gesto essencial quando se projecta um edifício.
Não existe melhor bússola solar do que os gatos. Se seguirmos o percurso do descanso destes animais ao longo do dia, verificamos que estes procuram sempre os locais com maior exposição solar (nem que seja aquela frincha do último raio solar diário!). Casas naturalmente iluminadas são casas naturalmente bem posicionadas, contribuindo para o bem estar e aquecimento natural e eficaz do interior doméstico. Se quisermos pistas sobre onde colocar o nosso sofá ou aquela planta que tem de apanhar luz directa o dia todo, só temos de seguir a nossa bússola felina.
Edifícios bem implantados são edifícios mais propícios a terem uma boa qualidade do espaço interior, com gatos e respectivos donos felizes a co-habitarem.
Os gatos gostam de explorar e posicionar-se em locais altos da casa: é um mecanismo que os permite controlar, a partir de uma distância segura, o máximo de território possível através da observação de tudo o que os rodeia. Estes locais fazem-nos sentir seguros e com sensação de domínio, dando-lhes a possibilidade de explorar o espaço doméstico a partir de diferentes ângulos e experimentando diferentes sensações.
Uma dupla de arquitectos que explorou muito bem esta característica espacial foi o casal Eames. Na Eames House os locais com pé direito duplo são os grandes protagonistas desta construção doméstica, sendo dado especial destaque ao espaço destinado à sala de estar. Este é uma espécie de ambiente teatral visível a partir de quase toda a casa e com vista privilegiada a partir da mezzanine dos espaços de dormir que se debruçam sobre esta ampla divisão. A partir deste ponto, é possível ter uma percepção geral do espaço interior e exterior envolvente dando ao proprietário/anfitrião uma sensação de “domínio” sobre o espaço social a partir do seu espaço privado, qual felino curioso ávido de recolher todos os estímulos que os vários ambientes lhe transmitem!
Associado ao ponto anterior, a questão do controlo da escala dos espaços arquitectónicos é fundamental no desenho harmonioso da habitação. Para cada função ou programa, o espaço terá de ser pensado e projectado com as dimensões adequadas à vivência doméstica.
Uma vez mais, gatos são excelentes escalímetros, fazendo uma utilização do espaço adequada à função que aí vai exercer. Para eles, quão mais ajustado ao seu tamanho for o local para dormir, mais confortáveis e seguros se vão sentir. No entanto, gatos são seres que odeiam sentir-se encurralados, pelo que um gato precisa, para a sua vida social, de um espaço amplo e com pé direito generoso onde seja possível expressar toda a sua personalidade.
Da mesma forma, os espaços de dormir e de descanso nas habitações devem ser mais ajustados à escala humana, sem nunca esquecer os compartimentos sociais com área suficientemente generosa para que aí possamos realizar as nossas tarefas diárias.
Na sequência do exemplo anterior, a Eames House é um óptimo caso de como os arquitectos deram aos espaços sociais e de trabalho dimensões generosas (locais com pé direito duplo), e às divisões dos quartos deram dimensões mais controladas (locais das mezzanines): contraste entre a intimidade da esfera privada e a partilha da esfera social.
Tal como os gatos, que muitas vezes são acusados de serem interesseiros, também nós queremos socializar apenas em certas alturas, sendo absolutamente delicioso por vezes estarmos aconchegados numa mantinha na privacidade do nosso quarto. Por isso, deixem os gatinhos estarem na sua cozy mezzanine a fazer aquela sesta diária de 10 horas (inveja!).
Como já referido anteriormente, os gatos não gostam de se sentir encurralados pois isso transmite uma sensação de domínio sobre os próprios. Para além disto, adoram explorar todo o espaço que está ao seu alcance, privilegiando os pequenos passeios diários entre as suas sestas.
Esta circulação por diferentes compartimentos permite aos felinos percorrerem e explorarem diferentes ambientes, enchendo-os de emoções e sensações despoletadas pela descoberta. De forma análoga, se estivermos “confinados” a viver numa habitação com apenas um compartimento, maior poderá ser a nossa sensação de clausura e até de monotonia.
Não será necessário vivermos em palácios para termos esta sensação equilibrada (ver ponto sobre Escala.), mas um exemplo muito prático de como espaços domésticos reduzidos podem inclusivamente afectar a nossa saúde mental, é a pandemia provocada pelo SARS-coV-2 e as quarentenas que, por consequência, nos foram impostas: espaços domésticos generosos e, preferencialmente, com pequenos espaços exteriores, eram importantes qualidades espaciais durante estes tempos.
Estes percursos, quais deambulações, remetem para a Promenade Architecturale de Le Corbusier: a importância de incluirmos um percurso de descoberta dos espaços ao longo do edifício; a existência de uma varanda que nos permite olhar de cima para o hall de entrada, qual controlo sobre o nosso “território” (ver ponto sobre Pé direito duplo.); o deambular pelo espaço que nos enriquece de sensações e descobertas.
A domesticação dos primeiros felinos pelo ser humano começou através de uma relação simbiótica com a qual ambas as espécies ganharam algo em troca: se por um lado os gatos ajudaram os primeiros homens sedentários a manter os cereais e produtos agrícolas a salvo de roedores e pragas, por outro, estes tinham alimento garantido de forma simples e, com o tempo, condições domésticas que facilitaram cada vez mais a sua necessidade de descansar longos períodos de tempo em segurança. Por outras palavras, a relação entre humanos e gatos sempre teve como primordial elo de ligação o espaço da habitação e a melhoria das suas condições.
Esta relação é tão longa e os gatos estão tão habituados a partilhar connosco a sua vida que foram capazes de se adaptar totalmente ao nosso espaço doméstico, fazendo dele o seu território. Os exemplos aqui expostos são baseados no puro conhecimento empírico daquela que é a minha relação com os meus gatos, sendo que seria possível dar continuidade ao tema. Como arquitecta, acho fascinante a capacidade espacial que estes animais demonstram e são uma prova da importância que a qualidade espacial trás à nossa vivência doméstica: espaços arquitectónicos de qualidade são essenciais para a progressiva melhoria de vida dos seus utilizadores, quer estes sejam humanos ou felinos.
Artigo escrito por: Ana Ferreira
Fotomontagens
Fotografias dos gatos da autora e das seguintes fontes:
img. 1: https://www.revistaad.es/arquitectura/articulos/jean-luc-godard-le-mepris-casa-malaparte
img. 2: https://www.eamesoffice.com/the-work/case-study-house-8/
img. 4: https://civilengineerkey.com/architectural-promenades-through-the-villa-savoye/
[1] Eduardo Souto de Moura em Simetrias, documentário da RTP com Álvaro Siza Vieira e Eduardo Souto de Moura
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